Era para ser simples. A Constituição dizia o que precisava ser feito. O Código de Processo Penal também. Mas quando o julgamento se torna político, o que acontece com a verdade jurídica?
É nesse labirinto de normas e exceções, de imunidades e prerrogativas, que nos encontramos ao analisar o caso que envolve Alexandre Ramagem, Jair Bolsonaro, e outros nomes associados à chamada “trama golpista”.
A história começa com um gesto inesperado — a Câmara dos Deputados resolve suspender o processo contra Alexandre Ramagem, utilizando-se da imunidade processual prevista na Constituição. Mas, como tudo no Brasil, nada é apenas o que parece. Essa decisão abriu uma nova discussão: o que acontece com os demais acusados que estavam sendo julgados com ele? Bolsonaro, os “kids pretos”, Felipe Martins… continuam no processo ou a suspensão deve se estender a todos?
A Contradição do Supremo
Segundo o advogado criminalista Jeffrey Chiquine, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) havia afirmado que o foro especial de Ramagem atraiu para si todos os demais processos, inclusive o de Bolsonaro. Isso se chama “conexão probatória”. Em outras palavras, se as provas são as mesmas, todos os réus devem ser julgados juntos.
E foi exatamente por isso que o STF unificou os processos no chamado “núcleo 1”, onde Ramagem, por ser deputado, tem o direito de ser julgado no STF. Mas se foi essa mesma prerrogativa que justificou levar Bolsonaro e os demais para o Supremo, por que agora essa conexão seria ignorada?
Chiquine levanta um ponto incontornável: se o foro especial de Ramagem serviu para atrair os outros réus ao STF, a suspensão do processo contra ele, decidida pela Câmara, também deveria suspender os processos contra todos os que foram incluídos com base nessa conexão.
Mas será que o STF aplicará a mesma lógica?
Um Julgamento Jurídico ou Político?
É aqui que o texto se torna mais do que uma análise técnica — vira uma reflexão sobre a própria justiça. “Não há que se esperar que o STF aplique corretamente a Constituição”, diz Chiquine com uma franqueza desarmante. A crítica não é apenas ao tribunal, mas ao uso político do direito, à instrumentalização do processo penal como forma de controle e marketing.
E você, que está lendo este artigo, já se perguntou: a justiça ainda é cega, ou ela enxerga muito bem quem está sendo julgado?
As Duas Imunidades: Material e Processual
Para entender melhor a base jurídica da discussão, é importante separar dois conceitos: imunidade material e imunidade processual. Ambas estão no artigo 53 da Constituição, mas têm significados bem distintos.
Imunidade material: garante que um parlamentar não pode ser responsabilizado por suas palavras, opiniões e votos no exercício do mandato.
Imunidade processual: permite que o processo contra o parlamentar seja suspenso se a maioria da Câmara assim decidir.
O STF já decidiu, por meio da súmula 245, que a imunidade material não se estende a terceiros — quem xingar alguém junto com um deputado, por exemplo, será processado. No entanto, a imunidade processual, quando usada para suspender o julgamento de Ramagem, deveria logicamente também afetar todos os outros processados junto com ele.
Mas, segundo Chiquine, é provável que o STF use uma interpretação conveniente: dirá que a suspensão só vale para Ramagem e desmembrará o processo. Isso violaria não só o princípio da conexão probatória, mas também o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
E mais uma vez, voltamos à pergunta incômoda: quando o Supremo escolhe ignorar suas próprias decisões anteriores, o que sobra do Estado de Direito?
A Engenharia da Narrativa
Ao analisar os bastidores do julgamento, fica claro que a engenharia narrativa está em pleno funcionamento. Primeiro, cria-se uma denúncia em bloco. Depois, unificam-se os réus no mesmo processo. E quando a política exige, desmembra-se o caso para seguir julgando seletivamente.
Parece justiça ou estratégia?
Mais ainda: como é possível sustentar que Bolsonaro deve continuar sendo julgado em um processo que, originalmente, foi unificado por causa da prerrogativa de Ramagem? A resposta, segundo os especialistas, é simples: não é possível — ao menos, juridicamente falando.
Mas, como bem pontua Chiquine, não estamos diante de um julgamento técnico. “É um processo político.” E nesse cenário, a Constituição vira apenas uma referência distante, muitas vezes moldada à conveniência do momento.
A Ficção Jurídica de 15 de Dezembro
Outro exemplo da narrativa construída em torno do caso é o suposto atentado contra ministros do STF, mencionado na denúncia como tendo ocorrido em 15 de dezembro. Chiquine classifica essa acusação como “ficção”. E essa palavra — ficção — deveria nos assustar.
Porque se os tribunais passam a julgar com base em ficções, em narrativas construídas, em suposições que não se sustentam em provas concretas, o que impede qualquer cidadão de ser o próximo alvo?
A democracia que diz defender a Constituição, mas permite que ela seja dobrada ao sabor dos ventos políticos, está protegendo a quem?
A Previsão de um Desfecho Injusto
Jeffrey Chiquine antecipa com precisão o que acredita que o STF fará: reconhecerá a suspensão apenas para Ramagem, dividirá o processo, e continuará julgando os demais, inclusive Bolsonaro, como se nada tivesse acontecido. E fará isso apesar das contradições evidentes com decisões anteriores do próprio tribunal.
Se essa previsão se concretizar — e tudo indica que sim —, estaremos diante de mais um capítulo em que a coerência jurídica é deixada de lado. Um tribunal que estende a prerrogativa de foro de um deputado aos demais acusados, mas não estende a suspensão do processo, estará aplicando pesos e medidas diferentes conforme o interesse político.
E você, leitor, consegue confiar em um sistema que age assim?
A Constituição Ignorada
O que está em jogo aqui não é apenas o destino de Ramagem ou Bolsonaro. É algo maior, mais profundo e mais perigoso: a estabilidade do próprio sistema jurídico. Quando a Constituição deixa de ser a referência máxima e passa a ser interpretada conforme o contexto político, perdemos a segurança do direito. Todos perdem.
A pergunta que fica é simples, mas poderosa: será que você ainda se sente protegido por essa justiça?
Quando processos são unidos por conveniência e desmembrados por estratégia, quando imunidades são estendidas e negadas de acordo com o réu, quando acusações se baseiam em ficções, estamos mesmo falando de justiça?
É hora de refletir.
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