Maioria do STF Decide Reinterpretar o Marco Civil e Aumenta Risco de Censura


Ao invés de aguardar o Parlamento decidir com clareza e debate democrático como regular as redes sociais, o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu tomar para si essa tarefa — e está reescrevendo, por meio de julgamentos, as regras da internet no Brasil. O artigo 19 do Marco Civil da Internet, que protege plataformas e usuários da censura arbitrária, agora corre sério risco de ser esvaziado por ministros que assumem um papel que não lhes cabe: o de legisladores.


Enquanto os deputados e senadores deixaram claro em 2023 que não queriam aprovar mudanças radicais no modelo atual, o STF avança na justificativa de que o Congresso seria “omisso” — ignorando que não votar é também uma forma legítima de decisão política . Ao usar a Constituição como pretexto, o tribunal está criando um novo regime de responsabilidade para as redes sociais sem passar por uma discussão ampla e plural. E isso tem um preço: mais controle estatal sobre o que pode ou não ser dito online , sob o disfarce de combate à desinformação.


Maioria do STF decide reinterpretar o Marco Civil e aumenta risco de censura

O Supremo Tribunal Federal formou maioria nesta terça-feira para mudar o modo como o artigo 19 do Marco Civil da Internet é interpretado. Esse dispositivo é considerado um dos pilares da liberdade digital no Brasil, pois estabelece que as plataformas só podem ser punidas por conteúdo de terceiros se não cumprirem ordens judiciais de remoção.


Com o voto do ministro Gilmar Mendes, o tribunal chegou a seis ministros favoráveis à mudança. Até agora, os ministros André Mendonça, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes já votaram. Só Mendonça manteve-se contrário, defendendo a constitucionalidade integral do texto.


O fim da proteção contra censura arbitrária?

O artigo 19 foi criado exatamente para evitar que empresas removam conteúdos por medo de serem processadas. Sem essa regra, elas tendem a agir com excesso de cautela, tirando do ar qualquer coisa que possa gerar problema inclusive críticas políticas legítimas.


Um dos pontos mais polêmicos do julgamento é a inclusão do crime de "ataque ao Estado Democrático de Direito" como motivo para responsabilizar as redes. Essa expressão é muito ampla e pode ser usada para calar vozes críticas ao governo ou às instituições , sob o pretexto de combater desinformação ou violência política.


Alguns ministros defenderam que plataformas devem remover certos tipos de conteúdo por conta própria, sem esperar ordem judicial. Isso inclui posts sobre terrorismo, pornografia infantil e outros crimes graves, mas também categorias vagas, como “discurso de ódio” e “ameaça ao Estado”.


Gilmar Mendes apoiou a ideia de responsabilização proporcional , sugerindo que as redes sociais sejam cobradas quando houver repetição de conteúdos ilícitos. Ele listou sete situações em que a remoção seria obrigatória, entre elas casos objetivos e outros mais subjetivos.


A falta de clareza sobre o que realmente caracteriza ameaça à democracia gera insegurança jurídica e risco real de abuso : o que hoje é visto como crítica política pode virar crime amanhã, dependendo de quem esteja julgando.


Novo modelo estimula a autocensura das plataformas

Com a nova orientação do STF, plataformas digitais podem começar a agir de forma mais severa para evitar punições. Isso significa que muitos conteúdos serão removidos preventivamente , mesmo sem confirmação de ilegalidade.


Flávio Dino sugeriu que a Procuradoria-Geral da República (PGR) atue como fiscal dessas regras até que o Congresso Nacional decida uma nova lei. Ele também introduziu o conceito de “falha sistêmica”, segundo o qual as redes só seriam punidas se tolerarem repetidamente conteúdos proibidos.


Cristiano Zanin, por sua vez, defendeu que redes com curadoria algorítmica aquelas que promovem conteúdos tenham maior responsabilidade. Segundo ele, essas plataformas podem ser cobradas por conteúdos “manifestamente ilegais” após denúncia de usuários.


Dias Toffoli e Luiz Fux foram ainda mais longe, defendendo que notificações privadas bastariam para exigir a remoção de conteúdo , o que aumentaria ainda mais o poder de grupos específicos sobre o que deve ou não ficar no ar.


Barroso, por sua vez, manteve a necessidade de ordem judicial em crimes contra honra, mas também votou pela remoção imediata em temas como pornografia infantil, terrorismo e golpe de Estado.


André Mendonça foi o único a divergir, defendendo que o tema deve ser resolvido pelo Congresso e lembrando que alterar o Marco Civil dessa forma pode prejudicar a liberdade de expressão.


Decisão abre brecha para controle político da internet

O relator original do caso, Dias Toffoli, iniciou o debate há meses, pedindo que o STF deixasse de lado o papel de mero árbitro de disputas individuais e passasse a criar um novo marco geral para a internet. Ele argumentou que o Congresso estaria “omisso” e que caberia ao Judiciário “compatibilizar” a legislação com a realidade atual.


Apesar disso, especialistas alertam que não cabe ao STF substituir o Parlamento . Para eles, o que o tribunal está fazendo é, na prática, legislar por meio de julgamentos , algo que pode trazer consequências negativas para a segurança jurídica e o espaço de debate público.


Luís Roberto Barroso tentou minimizar o impacto, dizendo que o STF não estaria criando novas leis, mas apenas decidindo casos concretos. Juristas discordam: para eles, ao reinterpretar o artigo 19, o tribunal está ditando regras gerais para todas as plataformas , o que configura interferência fora de seu alcance original.


O julgamento do STF sobre o Marco Civil da Internet mostra que estamos caminhando para uma internet mais controlada e menos livre . Ao flexibilizar a exigência de ordem judicial para a remoção de conteúdo, o tribunal incentiva plataformas a agirem com antecipação, muitas vezes por medo de serem punidas.


Isso cria um ambiente onde qualquer opinião que incomode autoridades ou grupos dominantes pode ser silenciada . Críticas políticas, protestos e até debates sobre corrupção ou falhas do sistema podem ser classificados como “ataques ao Estado Democrático de Direito” e removidos antes mesmo de serem analisados por um juiz.


O risco mais grave é o aumento da censura velada , onde não são mais juízes ou políticos que decidem o que sai do ar, mas as próprias plataformas, por antecipação. E se o governo puder indicar quais conteúdos são perigosos, quem garante que a escolha será justa e neutra?


Enquanto isso, o Congresso Nacional assiste passivo ao processo. Em 2023, os parlamentares decidiram não votar o chamado PL das Fake News, justamente por temerem que ele virasse instrumento de controle. Agora, quem dita o rumo são os ministros do STF , e o país avança para um cenário onde o que é dito na internet pode depender mais da vontade do Estado do que da própria Constituição.

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